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Right to Repair: Desafios legais e práticos.

O Right to Repair é um movimento que iniciou na Europa e posteriormente ganhou bastante força nos Estados Unidos, e busca garantir maiores direitos ao consumidor sobre seus produtos, principalmente no que tange ao controle para reparos ou modificações de forma independente, sem depender exclusivamente dos fabricantes ou de assistências técnicas autorizadas.

No Reino Unido, por exemplo, as fabricantes são obrigadas, por força de lei, a oferecerem peças originais de seus produtos para venda direta aos consumidores. Já nos EUA, o foco tem sido facilitar reparos independentes ou por terceiros, o que, consequentemente, viria a diminuir o preço dos serviços em razão da maior concorrência.

Recentemente, a ideia vem sendo difundida no Brasil, e já surgem Projetos de Lei, sob a justificativa de que a prática das empresas seria abusiva, uma vez que elas controlam os processos desde a fabricação até a manutenção das mercadorias. Como exemplo, temos a PL nº 6151/2019, que pretende garantir a disponibilização de peças e manuais no mercado.

Especificamente no mercado automobilístico, o Right to Repair prevê a liberdade de escolha dos consumidores dos locais nos quais deseja realizar a manutenção e reparação de seus automóveis. Além disso, há o objetivo de fazer com o que os proprietários de veículos e os reparadores independentes tenham acesso a informações de diagnóstico do fabricante, incluindo atualizações técnicas, bem como ferramentas específicas para consertos e as peças necessárias.

Apesar da importância da busca pela facilitação aos consumidores, é importante que alguns pontos sejam considerados e amplamente discutidos, pois essa alteração impacta em fatores essenciais relacionados a qualidade de serviço e segurança dos clientes.

Antes de mergulharmos sobre esses pontos, é necessário entender que no Brasil, para assegurar a cobertura da garantia do fabricante, é exigido que os reparos sejam feitos em concessionárias autorizadas, que são empresas que atendem sob regime de concessão, tendo autorização para comercializar e representar a marca. Ou seja, por estar vinculada à fabricante, ela tem como garantir a qualidade dos serviços prestados, bem como responder por eventual má prestação de serviço.

A existência da obrigatoriedade de reparo possui como principal objetivo a garantia de qualidade do serviço, a certeza da capacidade técnica dos prestadores, bem como a segurança dos clientes e produtos.  

Os serviços realizados em concessionárias autorizadas são feitos por profissionais treinados pelas fábricas/montadoras para atender as especificações do carro. Eles conhecem os padrões de montagem das peças, o que torna o serviço mais seguro e confiável, principalmente em caso de reparo após uma colisão. Nessas situações, pode haver vistoria antes e depois do serviço, além do teste de rodagem.

Mesmo para aquelas tarefas em tese mais simples, como uma troca de óleo, é importante ter em mente que o momento da manutenção é também oportunidade de identificar possíveis problemas no automóvel e minimizar o risco de panes, muitas vezes perceptíveis apenas por profissionais comprovadamente com elevado conhecimento mecânico.

Ademais, o produto das montadoras é um bem de alto valor, cuja tradição da montadora e confiabilidade dos automóveis estão necessariamente ligados ao alto padrão de qualidade das manutenções.

Outro ponto que merece destaque e que diferencia o Brasil de outras nações, a exemplo dos EUA, é a forte presença do Código de Defesa do Consumidor nas relações comerciais nacionais, com característica bastante protecionista ao consumidor, conferindo às montadoras responsabilidade objetiva e solidariedade ampla. Naquele país, por sua vez, apesar da responsabilidade ser objetiva, ela é bem limitada pelos termos de garantia e há maior possibilidade de relativação, uma vez que é necessário que o consumidor prove negligência ou intenção.

Replicar um conceito utilizado por nação estrangeira sem atentar as especificidades do ordenamento jurídico brasileiro pode ferir princípios da razoabilidade e proporcionalidade, e sua aplicação deve ser ponderada conforme as peculiaridades jurídicas locais.

Sobre os conceitos de responsabilidade objetiva e solidariedade ampla, importante observar os dispositivos legais que as regem. Os arts. 12 e 14 do CDC, tratando da responsabilidade objetiva, determinam que o fornecedor responda pelos prejuízos causados por terceiros independentemente da existência de culpa. Com relação à solidariedade ampla, ela está descrita nos arts. 7º, § único, 18 e 25 do CDC, os quais determinam que a necessidade de responder por quaisquer falhas ou danos abrange não apenas quem manteve contato direto com o consumidor (comerciante), mas também os fornecedores que tenham participado da cadeia de produção e circulação do bem (fabricante, produtor, construtor, importador e incorporador).

Levando em consideração essas premissas, surge uma primeira problemática: como seria tratada a responsabilidade pelas falhas ocasionadas por empresas terceiras escolhidas pelo consumidor?  Caso não existisse qualquer alteração nos artigos do CDC listados, a fabricante estaria vinculada e responderia pelos serviços prestados por oficinas não credenciadas, com qualidade desconhecida, o que não parece razoável.

Para exemplificar a hipótese, imagine-se que o consumidor tenha optado por realizar um reparo em oficina não autorizada e, logo após o reparo, o carro apresentasse algum problema. Levando em consideração o direito de escolher onde reparar o carro sem perder a garantia, seria razoável permitir que o cliente acionasse a fabricante sob alegação de que o produto ainda se encontra com a garantia vigente?

Outros debates acerca da questão também podem surgir e gerar insegurança jurídica. Imagine-se que o consumidor possui algum problema durante a execução de seu reparo em oficina não credenciada e decide demandar no judiciário em face da fabricante e da oficina. Pelas regras atuais de solidariedade, a demanda poderia ser intentada apenas contra a fabricante ou contra ambas – e, nesta última hipótese, caso a oficina terceira não seja solvente, a execução poderia ser direcionada exclusivamente para a fabricante.

Ou seja, importando o conceito do Right to Repair sem observar a realidade do ordenamento pátrio, é inegável que essas situações gerariam um ônus imensurável paras as fabricantes de automóveis.

O movimento Right to Repair para a indústria automobilística é bastante complexo e certamente irá fomentar discussões no setor, mas inegável que sua aplicação aumentará os riscos absorvidos pelos fabricantes, a sinistralidade com veículos e o aumento de custos de garantia. Por esta razão, para se pensar na implementação do instituto, este precisaria de adaptações para o ordenamento jurídico nacional, respeitando a proporcionalidade e razoabilidade, traçando-se limites claros com o intuito de não prejudicar o equilíbrio do mercado interno nem gerar impactos significativos na oferta de veículos e no preço de venda dos automóveis.

Autor

Paula Marinho