A incorporação da Inteligência Artificial no setor jurídico tem promovido transformações estruturais na forma como os serviços jurídicos são prestados, analisados e compreendidos. Ferramentas baseadas em IA melhoram a eficiência operacional, reduzem problemas processuais e expandem o acesso a informações jurídicas. No entanto, esse progresso também traz consigo desafios éticos, o risco de suprimir a identidade das atividades profissionais e a necessidade de novas diretrizes regulatórias. Este artigo propõe uma análise crítica sobre os impactos da inteligência artificial no direito contemporâneo, discutindo suas ameaças, oportunidades e implicações para a formação jurídica, a prática profissional e os modelos de governança tecnológica.
A integração da inteligência artificial no campo jurídico não representa apenas um avanço tecnológico, mas um ponto de inflexão na própria estrutura epistemológica da advocacia contemporânea. Diferentemente de inovações anteriores, restritas à automação de tarefas operacionais, a IA inaugura uma nova etapa, na qual sistemas computacionais são capazes de aprender padrões, e sugerir ações em processos complexos, inclusive jurídicos.
Nesse cenário, a advocacia deixa de operar exclusivamente apenas com base em leis e normas interpretadas por humanos e passa a coexistir com inteligência artificial, que, embora destituídos de consciência ou responsabilidade moral, participam ativamente da produção de efeitos jurídicos.
Essa transformação ocorre em meio a múltiplas contradições: de um lado, há a imparcialidade judicial e padronização da tomada de decisões; de outro, os riscos de apagamento da dimensão humana do Direito, aprofundamento de desigualdades algorítmicas e enfraquecimento das garantias processuais. O campo jurídico, historicamente pautado por procedimentos formais e hierarquias cognitivas baseadas na experiência humana, é desafiado pela emergência de sistemas como ferramentas de jurimetria, plataformas preditivas e assistentes automatizados, os quais redesenham não apenas fluxos de trabalho, mas concepções fundamentais sobre mediação, responsabilidade e autoridade legal.
No Brasil, o fenômeno se intensifica com a adesão de instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao uso da IA em iniciativas como a Plataforma Sinapses, voltada à automação inteligente de tarefas judiciais. Paralelamente, o debate legislativo avança com o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que propõe um Marco Legal da Inteligência Artificial. Tais movimentos demonstram que o futuro da advocacia não será definido apenas por avanços tecnológicos, mas também pela capacidade crítica de interpretar, regular e interagir com sistemas inteligentes.
Diante disso, propõe-se uma análise estratégica e crítica sobre o impacto da IA na advocacia, delineada na discussão sobre a aplicação da IA no campo jurídico sob a ótica da cognição computacional, os desafios cognitivos e éticos impostos pela lógica algorítmica, a reconfiguração do mercado jurídico e os impactos para a formação profissional e os caminhos regulatórios possíveis frente à crescente complexidade dessas tecnologias. Partindo de uma abordagem interdisciplinar, que envolve o Direito, a Ciência da Computação e a Teoria Crítica da Tecnologia, busca-se compreender, de forma integrada, os riscos e as oportunidades que se colocam para o futuro da profissão jurídica.
O progresso assimétrico das aplicações de IA no campo jurídico reflete tanto a aceleração da tecnologia quanto as restrições estruturais na prática jurídica. Inicialmente, a IA jurídica se limitava à automatização de tarefas repetitivas, como geração de rascunhos, extração de cláusulas e revisão de contratos, mas desde então evoluiu para análise e interpretação de documentos, além de prever resultados jurídicos por meio de aprendizado supervisionado e modelos baseados em dados previamente projetados.
Ferramentas como a Jurimetria Legal brasileira (JUIT, Jurimetria Brasil) opera sobre grandes conjuntos de decisões, estatutos e contratos para gerar análises de probabilidades que reduzem o custo da tomada de decisão pelas inteligências artificiais. Tais aplicações passam a ser guiadas por evidências comprovadas e não apenas por intuições doutrinárias ou jurisprudência manualmente selecionada.
Contudo, a entrada da IA no espaço decisório jurídico não é neutra: ela transforma os parâmetros de atuação e da credibilidade da profissão. O que está em jogo não é apenas a eficiência operacional, mas a transição do papel do advogado de operador normativo para curador e estrategista de inferências computacionais.
A substituição parcial da racionalidade jurídica pela racionalidade algorítmica introduz desafios éticos. Sistemas de IA operam com base em inferências estatísticas extraídas de bases e contingentes, o que ameaça a consistência, a imparcialidade e a previsibilidade das decisões legais.
Além disso, a lógica da IA tende a deslocar o foco da normatividade para a eficiência, o que confronta valores fundamentais do Direito, como dignidade, equidade e justiça substancial. Há um risco real de que os critérios do algoritmo passem a ditar os rumos da atividade jurídica com base em indicadores de risco, produtividade e lucratividade.
Do ponto de vista ético, impõe-se a necessidade de auditar os sistemas a fim de aplicar a visão humana. A discussão sobre a responsabilidade civil por decisões automatizadas ainda é recente no ordenamento jurídico brasileiro, carecendo de regulamentação específica, sobretudo frente ao avanço de ferramentas baseadas em IA.
As possibilidades oferecidas pela automação não apenas alteram a lógica produtiva da advocacia, mas redefinem as fronteiras de atuação. Com o aparato da tecnologia, aumenta-se a demanda por perfis híbridos, capazes de integrar competências jurídicas com habilidades em análise de dados, segurança da informação e pensamento computacional. Surge, assim, um novo perfil profissional: o advogado estrategista de dados.
Ao mesmo tempo, proliferam-se as empresas que ofertam soluções automatizadas de petições, compliance, arbitragem online e até mesmo mediação digital. O mercado jurídico se fragmenta, demandando dos profissionais um reposicionamento estratégico, sob pena de se tornar um obsoleto funcional.
Apesar dos riscos, a IA também inaugura uma série de oportunidades transformadoras para o Direito. A capacidade de processar grandes volumes de dados em tempo real pode acelerar processos judiciais, reduzir litígios repetitivos e expandir o acesso à justiça. Adicionalmente, a ferramenta pode ser empregada na análise de impacto legislativo, no controle de convencionalidade automatizado e na prevenção de litígios, utilizando modelos para sinalizar riscos jurídicos antes da concretização de danos. Essas novas formas de atuação ampliam o campo de trabalho jurídico para além do contencioso, posicionando o advogado como analista, gestor de riscos e administrador de políticas públicas baseadas em evidência.
Contudo, é preciso garantir que tais avanços não acentuem as desigualdades digitais, promovendo uma IA jurídica que seja pública, acessível e orientada por princípios de justiça social.
A emergência da IA exige uma reformulação estrutural dos currículos jurídicos. A formação tradicional, baseada exclusivamente em dogmática jurídica, torna-se insuficiente frente à complexidade dos sistemas inteligentes. É importante incorporar disciplinas como Introdução à Ciência de Dados Jurídicos, Fundamentos de Ética Algorítmica, Regulação de Tecnologias Emergentes, além de tópicos em lógica computacional e inteligência artificial explicável.
Mais do que ensinar a usar ferramentas, trata-se de formar juristas capazes de compreender as estruturas que sustentam a IA e suas implicações jurídicas, sociais e filosóficas. O modelo educacional deve migrar de uma lógica de conteúdo para uma lógica de resolução de problemas complexos, com ênfase em pensamento interdisciplinar, modelagem computacional e impacto regulatório.
A ausência de um marco regulatório robusto sobre IA no Brasil impõe riscos consideráveis à segurança jurídica e à proteção de direitos fundamentais. O Projeto de Lei nº 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial, representa um avanço inicial ao estabelecer princípios como transparência, segurança, proporcionalidade e prevenção de discriminações.
Enquanto isso, o Poder Judiciário avança com iniciativas autônomas, como a criação do Comitê de Inteligência Artificial do CNJ, sem que haja uma estrutura normativa integrada que limite, discipline e oriente o uso de tais tecnologias. O desafio, portanto, não é apenas regular a IA, mas assegurar que sua regulação se articule com os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Esses avanços vão transformar a forma como os advogados desempenham seu trabalho, decidem sobre o ajuizamento de processos e resolvem disputas para seus clientes. No curto prazo, o desenvolvimento dessas ferramentas preditivas deve aumentar a transparência, a honestidade e a ética, além de fortalecer a capacidade dos advogados de atuar com mais eficiência, aprofundar e expandir suas especializações, e oferecer maior acesso à justiça, entregando mais valor aos clientes. Já no longo prazo, ainda não está claro o quanto o impacto da inteligência artificial será profundo e revolucionário para a profissão jurídica.
Em síntese, a incorporação da inteligência artificial no campo jurídico representa um fenômeno irreversível que demanda uma abordagem equilibrada entre inovação tecnológica e preservação dos valores fundamentais do Direito. O sucesso dessa transição dependerá da capacidade dos profissionais jurídicos de se adaptarem às novas demandas, da implementação de marcos regulatórios adequados e, sobretudo, da manutenção da dimensão humana na aplicação da justiça.
Assim, o futuro da advocacia não será determinado pela substituição do advogado pela máquina, mas pela evolução harmônica entre inteligência humana e artificial, assegurando que a tecnologia sirva como instrumento de democratização do acesso à justiça e aprimoramento da prestação jurisdicional.
- BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2023.
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